segunda-feira, 30 de maio de 2011

Só vai sobrar a lua cheia

Maria Rita Kehl

Preciso colocar nesta carta o que hoje não me sai do coração: enquanto estou no consultório, o congresso vota o novo Código Florestal.

Já escrevi contra o projeto do Aldo Rebelo quando tinha a coluna no Estadão. Todos sabemos o quanto o projeto é lamentável, quanto é cínica a alegada defesa dos pequenos proprietários – que só favorecerá os grandes – feita pelo deputado do PC do B. Ele sabe disso, também. Já reparou na expressão constrangida, envergonhada mesmo, que ele tem nas fotos e entrevistas na TV, desde que encampou a bandeira da devastação do que restou de verde no interior do Brasil? Sabe que o projeto favorece quem tem muito dinheiro, inclusive para comprar pequenos lotes e se livrar da obrigação da reserva legal. Sabe que a probabilidade de o clima aquecer, de os rios minguarem, de a terra ressecar é imensa. O estrago vai surgir em menos de três gerações.  O argumento de que os ecologistas defendem as árvores em vez das pessoas é hipócrita. Nem sou ecologista militante, mas sei que a vida precisa de água, de sombra, de terra fértil, assim como os pequenos agricultores precisam de condições para plantar alimentos, uma vez que os grandes fazendeiros plantam cana, eucalipto e soja para combustível, papel e exportação. O que escrevi no Estadão era mais bem fundamentado do que este desabafo, e me rendeu uma carta-resposta particular, em que o nobre deputado disse que eu não deveria escrever sobre o que não conheço. Ha ha há. Se aquele projeto foi escrito por quem “conhece”, posso me considerar especialista na matéria.

Este foi meu desabafo panfletário.

O outro lado da minha defesa é lírico. Queria que a parte rural do Brasil continuasse bela. Como é prosaica, como é desencantada a paisagem que vejo do avião quando sobrevoo Mato Grosso e Goiás: a desolação dos pastos e das plantações de soja, desertas, sem gente nem água nem bicho, com uma casinha no meio e um ou dois tratores no campo. O povo que ali morava agora vive triste numa casa de periferia da cidade mais próxima. Como é sem graça a paisagem do dinheiro.

Não venham me dizer que eu vivo fora da realidade. Onde é a realidade? Ninguém vive nela, só os economistas e os lógicos, esses tipos sem poesia nenhuma. Os outros todos vivem entre o real e o imaginário, e é tão bom que seja assim.  Na década de 1980, eu escrevi um artiguinho em que dizia que as reservas ambientais são nossas reservas de imaginário. Precisamos da natureza como nosso Outro, para que a cara do mundo não se reduza a nosso espelho, ao espelho do que temos de pior: nossa capacidade de destruir e explorar.

Nunca vi uma onça no mato, nunca passei por um ninho de araras-azuis nem por um bando de macacos brincalhões. Mas preciso que eles existam no mesmo mundo que eu, assim como preciso de um referente para a palavra queridas como roça e sertão.

Termino com a letra de uma canção de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira que não posso cantar no blog, mas canto aí na Urca pra você e Cri, logo mais. (clique abaixo para ouvir)

Automóvel lá nem se sabe/ se é homem ou se é mulher/ quem é rico anda em burrico/ quem é pobre anda a pé.// Mas o pobre vê nas estradas/ o orvalho beijando a flor/ vê de perto o galo campina/ que quando canta muda de cor/ vai molhando os pés no riacho/ que água fresca, nosso Senhor/ vai olhando coisa a granel/ que a gente pra mor de ver/ um cristão tem que andar a pé//

Ai ai, que bom/ que bom, que bom que é/ Uma estrada e uma cabrocha/ no sertão de Canindé/ Ai ai, que bom/ que bom, que bom que é/ uma estrada e a lua branca/ e a gente andando a pé.

Linda, não? A melodia é maravilhosa. Mas pena, do jeito que a coisa está, só vai sobrar a lua cheia. Penso no que Walter Benjamin escreveu sobre a Europa durante a primeira guerra, uma paisagem destruida diante da qual os homens só teriam alguma familiaridade com as nuvens no céu. E olhe que nada é mais mutável que as nuvens no céu.  Muitos beijos de sua amiga momentaneamente desolée, Rita

Artigo publicado aqui em 25.05.2011, 15:40

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